A vitória da Micas
Pouco tempo passava desde que o Porto de Abrigo estava de portas abertas quando chegou às novas vidas, para ficar. Mestre de vocação, não sabia a Micas o quanto ainda havia de ter para nos ensinar.
O rosto de olhos atentos e sorriso simples, os caracóis que os dedos enrolavam, sem precisar de ajuda, todas as manhãs. A postura de quem gosta de gastar o tempo a observar o que passa à volta, tantas vezes as mãos atrás das costas, sem largar o terço e o livrinho pequenino da palavra maior.
Os chinelos para passear pelo corredor e sentar à janela em dias de chuva, o chapéu para acenar o “volto mais logo” à saída para passear pela terra ao sol. A voz grave e o jeito calmo, de quem sabe de si.
Quando estamos em casa, em família, as rotinas tomam-nos os dias e saber que está tudo igual diz-nos quase sempre que continua tudo bem. Mas não naquele dia de verão, porque naquele dia a Micas não chegou. Naquele dia a Micas chamou.
Ao som da campainha foi encontrada caída no chão do quarto e, a partir desse momento, muito mudou. Quase um mês de distância até cumprir o desejo de voltar a casa, tempo que não chega a ninguém para se preparar para a nova vida que trazia o diagnóstico de AVC, a disartria, o défice motor e a disfagia grave.
Um prognóstico reservado quanto à recuperação, sem investimento nas certezas de nada. Só a evidência, ou a impotência, de dar tempo ao tempo. É preciso tempo para aceitar o que não se pode controlar, o que não dá para voltar atrás e mudar. É preciso tempo para continuar.
E com tempo a Micas deixou-nos entrar. Abriu-nos o seu mundo, antes tão só seu, e aceitou a nossa ajuda para a cuidar. Não esqueceu que existe mais mundo lá fora, e quis sair da cama outra vez. Voltou à sala e à família do Porto de Abrigo, demasiado grande para caber completa em visitas no quarto.
Três meses de uma nova vida que foram também muitas horas das vidas de muitas pessoas que lhe querem bem. Momentos de dúvida, ansiedade e angústia. A tentativa e o erro. A intuição ancorada no conhecimento e uma sensibilidade que está sempre em flor, na pele de quem sente e não desiste. Um gesto, assumido e repetido como quem não precisa das palavras para falar: aquela sonda não era para ali estar, por isso não ia parar de a retirar.
Alimentamos-lhe a esperança com a marcação de uma consulta e inspiramo-nos na sua fé para não ter medo de acreditar. Agradeceu-nos emocionada, encheu-nos a alma e o coração. Começamos a procurar respostas para possibilidades que não tínhamos ousado pensar e gente com a mesma vontade de arriscar. Felizmente, as pessoas especiais têm o dom de se cruzar quando algo de muito poderoso tem de acontecer. Foi, certamente, por isso que conhecemos o Dr. Miguel e que este nos apresentou a Dr.ª Isabel.
A quem o doce nunca amargou, foi em consistência de mel que o treino alimentar trouxe de novo a independência que parecia perdida há meio ano, bem na outra vida que já está a ficar para trás. Quando se senta à mesa, a Micas toma uma refeição normal, bebe líquidos e só precisa que os alimentos lhe sejam preparados para que possa usar colher de sobremesa, por ser mais fácil de segurar e levar à boca. Sim, recusa normalmente ajuda para se alimentar. É mesmo verdade e enche-nos de orgulho.
A Micas está feliz, principalmente por não se sentir tão dependente e por se fazer perceber melhor quando quer falar. É só o que importa para ficarmos felizes também. Temos muito para lhe agradecer porque a mestre ensinou-nos a maior das lições: nunca é tarde para recomeçar.
O futuro? Ninguém sabe, mas venha o que vier, vamos continuar aqui para o ajudar a transformar.