“Para não chatearem ninguém”: como amarrar idosos faz parte da rotina invisível dos lares
Lençóis, ligaduras, grades: conter os idosos em lares e hospitais continua a ser comum sob pretexto da segurança e proteção. Especialistas alertam que não traz benefícios — pelo contrário
Quando entrava ao serviço, Filomena (nome fictício) sabia que “estava a ir contra aquilo que era correto”. Começava logo à meia-noite, hora a que fora instituída uma nova norma. “Eu ia acordar os utentes para lhes dar medicação para os pôr a dormir... quando eles já se encontravam a dormir.” Acontecia com cerca de metade dos idosos que habitavam o lar onde trabalhava, no interior norte de Portugal. Não sabia de que medicação se tratava, porque “já vinha preparada”, mas sabia o porquê. “Era para eles passarem a manhã tranquilos e não chatearem ninguém”, conta a cuidadora, que pediu para se manter sob anonimato.
O cenário das manhãs ainda lhe vem à cabeça recorrentemente, mesmo tendo pedido a demissão daquele lar de idosos há seis anos. “Havia uma sala onde passavam o tempo. A televisão estava ligada e eles a dormir. Éramos instruídas a amarrar os mais agitados com lençóis, às cadeiras ou, às vezes, a corrimões.” Não raras vezes, à hora de almoço o efeito da medicação ainda persistia. “Estavam completamente ‘dopados’ e a dormir em cima dos pratos da comida.” As visitas eram da parte da tarde, a hora marcada. “As famílias não tinham conhecimento de nada.”
Nos lares dos países do sul da Europa, o uso de dispositivos que restringem os movimentos dos idosos — conhecidos como “contenções físicas ou mecânicas” — continuam a ser comuns, mesmo sem benefício clínico. São usados em comunhão com as chamadas “contenções químicas”: medicamentos como antipsicóticos, sedativos e estabilizadores de humor, usados para controlar os pacientes e mantê-los calmos, por vezes sem justificação terapêutica.
Uma investigação que envolveu o jornal Expresso, a L’Espresso, em Itália, o El Diário, em Espanha, e a revista norteamericana Undark revela um fosso entre o que diz a ciência e a prática do dia a dia.
Em Portugal, não existem estudos abrangentes que permitam medir a prevalência deste fenómeno, mas cerca de uma dezena de peritos ouvidos pelo Expresso garantem que se trata de uma prática transversal a todos os tipos de instituições.
Embora possam ser necessárias em situações muito específicas, as contenções físicas “continuam a ser usadas em excesso”, sem consentimento, muitas vezes “como resposta à escassez de recursos humanos”, afirma André Rodrigues, médico internista com competência em Geriatria pela Ordem dos Médicos e coordenador médico das residências emeis, em Portugal. As formas mais comuns incluem amarrar os idosos às cadeiras com lençóis ou bandas, o uso de grades nas camas, imobilizadores de punhos, tornozelos e tronco, bem como o encerramento de portas para impedir a circulação.
João Pärtel Araújo, enfermeiro especialista em Geriatria e fundador da Humanitude Portugal — uma associação que presta serviços de formação e consultoria a lares —, revela que entre as últimas 11 instituições com as quais trabalhou havia uma prevalência média de 63,5% de contenções físicas, “sem contar com grades e trancas na porta, sem que as pessoas tenham acesso à chave”, pormenoriza. Quase sempre são justificadas com o argumento de prevenir quedas, ainda que isso não tenha “qualquer rigor científico”, lamenta.
Contenções mais comuns incluem lençóis ou bandas em cadeiras, grades nas camas e prender punhos e tornozelos
Uma revisão científica de 11 estudos, que incluem quase 20 mil idosos, publicada em 2023, constatou que a redução das contenções físicas em lares de idosos não levou a um aumento nas quedas. Ralph Möhler, professor de investigação em serviços de saúde da Universidade Heinrich Heine de Düsseldorf, na Alemanha, que liderou o estudo, destacou ao Expresso que as contenções podem, na verdade, aumentar o risco de lesões. “Os enfermeiros querem fazer algo benéfico pelos utentes, como prevenir lesões, mas, na verdade, estão a fazer pior, a longo prazo.”
Estudos internacionais anteriores concluíram que as contenções físicas também podem causar danos diretos: um estudo de 2018 com pacientes de unidades de cuidados intensivos constatou que quase 40% das pessoas contidas desenvolveram delírio — um estado de confusão súbita. Uma revisão bibliográfica de 2014 apurou que as contenções impactavam negativamente o bem-estar psicológico e eram um fator de risco para futuros problemas de saúde. Outra revisão comprovou haver uma relação entre as contenções físicas e o desenvolvimento de síndrome de stress pós-traumático.
Alguns dos tipos mais invasivos de contenção, como cintos peitorais para colocar na cama, podem até ser fatais. E pelo menos um caso já chegou à justiça em Portugal. Aconteceu em 2020, ano em que uma mulher de 75 anos foi imobilizada com um lençol, na cama, e acabou por morrer estrangulada. “A vítima foi escorregando lateralmente da cama, até que, por incapacidade de mudar de posição, acabou por ficar presa, com a faixa em roda do pescoço, que a foi lentamente comprimindo, produzindo-lhe asfixia até lhe causar a morte.”, dá como provado o acórdão do Tribunal da Relação de Évora.
O que a lei não diz
A prática das contenções físicas e químicas tem sido fortemente restringida em alguns países, como a Suécia, os Países Baixos e a Finlândia. Em Espanha e Itália, a discussão pública tem subido de tom nos últimos anos, com o país vizinho a viver um forte movimento social por “contenções zero”.
A restrição da prática, “tanto quanto possível”, é também defendida pela Organização das Nações Unidas (ONU). Claudia Mahler, especialista independente da ONU para o usufruto dos Direitos Humanos por idosos, afirma ao Expresso que a prática deve ser impedida, uma vez que as evidências de que as restrições funcionam para proteger as pessoas são escassas. “Há uma discrepância total entre o que já sabemos da ciência e o que realmente acontece na prática”, afirma.
Em Portugal, não existem números, mas vários peritos garantem que se trata de uma prática transversal
A lei é praticamente omissa em relação este tema. Questionado pelo Expresso, o Instituto de Segurança Social (ISS) menciona o Referencial de Boas Práticas na Prestação de Cuidados de Saúde nas Estruturas Residenciais para Pessoas Idosas, onde está explícito que as “medidas de contenção em idosos só podem ser realizadas após avaliação de risco clínico e em último recurso”. Afirma também que, “sempre que se verifique algum caso de contenção, é confirmado no processo individual do utente se a situação está regulada tendo em conta, nomeadamente, o interesse do utente e a decisão médica”.
Uma resposta que várias pessoas ouvidas pelo Expresso contestam. “A Segurança Social exige é o número de sanitas, o número de casas de banho e a dimensão dos corredores e dos quartos”, afirma João Pärtel Araújo.
Carmen Garcia, enfermeira especialista em Geriatria, argumenta que, “se houver um lar com 80% das pessoas acamadas e com feridas por pressão, a Segurança Social não percebe sequer que há ali maus cuidados”.
A enfermeira lançou uma petição há cerca de um ano para a proibição da prática de contenção física a idosos. O documento já conta com quase 13 mil assinaturas e deverá em breve ser levado à Assembleia da República. Defende que este tema é “uma terra de ninguém” e que isso acontece porque a prática “normalizou-se” em Portugal, presa à crença cultural de que os profissionais de saúde – ou a própria família – sabem o que é melhor para a pessoa.
“Se um pai chegasse a uma escola ou a uma creche e visse o filho, que começou a dar os primeiros passos e tem um risco grande de cair, amarrado, o que faria”, questiona. “Ninguém ia admitir que isso acontecesse. E, no entanto, continuamos a achar normal com os idosos.”
O caso dos hospitais
No caso dos hospitais, onde esta prática também acontece, existe apenas uma orientação da Direção-Geral da Saúde (DGS), de 2011, que define as situações específicas em que os enfermeiros podem aplicar contenções físicas: quando o doente se coloca em risco a si próprio ou a terceiros, ou recusa “tratamento compulsivo” ou “vital”. Sublinha também que deve tratar-se sempre de um “último recurso” e, “sempre que possível”, deve ter o consentimento do doente, além de ser “prescrito” e “registado”.
Na prática, no entanto, nem sempre é isso que acontece. Paulo Mota, enfermeiro diretor do Hospital de São João, no Porto, admite que a contenção física é usada com frequência em serviços como Medicina Interna ou Urgência, sobretudo em doentes idosos, “desorientados” pelas mudanças bruscas de ambiente e rotina. Frequentemente querem sair do hospital ou tentam arrancar a medicação intravenosa. Nestes casos, as contenções mecânicas são aplicadas “para proteger o doente”, defende, e “entram numa franja que não é prescrita”.
Ainda no ano passado, num internamento, um doente conseguiu vencer as grades, e caiu, conta Paulo Mota. “E depois a família, o que é que diz? Como é que é possível estar no hospital e cair?”.
Um relato diferente tem Rosário Bentes. A educadora de infância, de 59 anos, sente que demorou “muito tempo a reagir” quando, em outubro do ano passado, e após uma cirurgia simples num hospital privado, o pai de 81 anos começou a ser contido com os pulsos presos à maca por arrancar os cateteres. Primeiro aconteceu na instituição privada, depois numa unidade de cuidados continuados para onde viria a ser transferido e, por fim, no Hospital Amadora-Sintra, em Lisboa, onde a situação se agravou.
“Amarravam-lhe as mãos contra a cama, cada uma de um lado”, descreve. Era assim que o encontrava sempre que o ia visitar. Mesmo após apelos da família e promessas de mudança, o pai, entretanto debilitado por ter contraído uma bactéria multiresistente, continuou a ser imobilizado.
No início de fevereiro, numa das visitas, “estava tão amarrado” que Rosário cortou as ligaduras com uma tesoura “Depois de o soltar, ele demorou uma meia hora a conseguir voltar a mexer o braço, sem exagero, e eu chamei uma enfermeira”, recorda. Diz que foi “muito mal recebida”, mas insistiu que o pai “já não tinha forças nem para andar”. Sugeriu então que usassem luvas de contenção, próprias para estes casos, em vez de o manterem preso pelos pulsos. Nesse mesmo dia chamou o irmão e falou com uma médica. O pai viria a morrer dez dias depois de terem optado por lhe colocar as luvas adequadas. Rosário diz que ainda hoje tudo isto lhe “dói bastante”.
Em resposta ao Expresso, a Unidade Local de Saúde (ULS) Amadora Sintra escreve que “nas unidades de saúde, a ocorrência de quedas representa motivos de preocupação para as equipas, tornando-se por isso, essencial, adotar medidas preventivas”. Mais assevera que estas medidas são tomadas com “prescrição médica, indicação do motivo da contenção e reavaliação periódica”, de acordo com a orientação da DGS.
Estudos provam que a redução das contenções físicas em lares de idosos não leva a um aumento nas quedas
O tema tem sido alvo de dúvidas por parte dos enfermeiros, assume o bastonário, Luís Filipe Barreira. Por isso, a Ordem emitiu este ano um parecer sobre contenções físicas, com uma série de recomendações baseadas na orientação da DGS, de 2011. O bastonário admite que “pode existir um abuso” destes mecanismos, provocado “por falta de profissionais, porque estes doentes precisam de vigilância muito mais apertada”. E adverte: “os serviços têm de ter protocolos de atuação”.
Antes desta orientação da DGS, existiu uma circular normativa, publicada a 25 de maio de 2007. Entre outras funções, a sua publicação serviu para criar o Registo Nacional Anónimo de episódios de contenção física, “centralizado na DGS”, pode ler-se no documento, no qual se previa a “notificação obrigatória em sistema informático online, a disponibilizar na página web da Direcção-Geral da Saúde [...]”. Questionada pelo Expresso, a DGS respondeu que “não tem conhecimento da existência de um Registo Nacional Anónimo de episódios de contenção física”.
Segurança ou controlo?
Pouco falta para fazer dois anos desde o dia que Gustavo (nome fictício) não esquece: aquele em que deixou a casa de sempre para ir viver para um lar. Mas na instituição que lhe calhou, que o homem de 87 anos prefere não nomear, assistiu a situações de contenção física a outros utentes. “Havia um senhor que estava sempre amarrado à cadeira de rodas”, descreve. “Ele pedia para o soltarem e por vezes desamarrava-se. Então, elas amarravam-no a uma coluna do edifício”, recorda. “Eu tinha pena do homem.”
Com Gustavo nunca aconteceu. Mas conta que “as funcionárias berravam com as pessoas” e que algumas vezes lhe limitaram a comida. “Uma vez pedi três douradinhos, em vez de dois, e a resposta foi que só podia comer dois e, se começasse com muitas coisas, chamavam a minha filha para me levar para casa”. Também era obrigado a usar uma cadeira de rodas, coisa que já não acontece n’O Abrigo, em São João de Ver — o para onde conseguiu transferência em fevereiro do ano passado. Lá, onde falou com o Expresso, consegue andar com a ajuda de canadianas.
Alexandra Silva, diretora técnica d’O Abrigo, uma Instituição Particular de Segurança Social no concelho de Santa Maria da Feira, tem noção de que a sua instituição faz parte da fina franja de exceção no país. As portas estão abertas, não há horário para visitas, “os familiares podem vir a qualquer hora e têm o código para abrir a porta”, garante. Ali não se usam contenções. As pessoas deambulam e há quem saia todos os dias para dar um passeio.
“Os mecanismos ditos de segurança muitas vezes são de controlo. Qual é a minha legitimidade para impedir uma pessoa de viver a sua vida sob o pretexto de proteção?”, observa. Alexandra garante que é explicado às famílias, aquando da admissão das pessoas, muitas transferidas pela Segurança Social, que não faz parte da política da instituição prendê-las ao espaço nem limitar-lhes os movimentos. “Os lares de idosos não são hospitais e também não são prisões. São um sítio para onde as pessoas vêm viver e, como tal, a vida tem riscos.”
Além das contenções físicas, também são comuns as contenções químicas, para manter os utentes calmos
Os especialistas ouvidos pelo Expresso assumem que o problema é estrutural. Por isso, além dos protocolos de atuação e antes das mudanças físicas – como camas cota zero, ao nível do solo, joelheiras e pisos anti quedas – os especialistas dizem que é preciso formar os profissionais e alertar a sociedade.
Um inquérito feito a 250 enfermeiros e publicado em 2020 mostrou que mais de metade desconhecia a orientação da DGS sobre contenções físicas. E que, quando continham alguém, “valorizavam mais os pensamentos dos familiares que os dos doentes”, pode ler-se no documento.
“Portugal é dos poucos países da Europa que não exigem qualquer pré-requisito mínimo para a competência de quem presta cuidados a pessoas mais velhas”, alerta Pärtel Araújo. “Para resolvermos o problema das contenções, temos de resolver um problema de cultura, de paradigma, do modelo de cuidado”, sublinha também. “Há muita prática baseada no ‘porque sim’, porque era assim há 30, 50 anos. E eu costumo dizer: se um cirurgião fizesse a mesma cirurgia que fazia há 50 anos, provavelmente hoje perdia a licença.”
Carla Ribeirinho, professora no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, identifica como principal obstáculo à mudança “as ideias estereotipadas de que as pessoas mais velhas são incapazes”, o que leva a uma infantilização e paternalismo nas intervenções. A também consultora e supervisora de equipas técnicas em lares, sublinha que “a estratégia para o envelhecimento está na gaveta há quase um ano” e critica um Estado Social que “se retrai na criação de políticas públicas” e uma Segurança Social que “não dá respostas”. Ainda assim, ressalva, a responsabilidade não é apenas do Estado. “A culpa é também de todos nós, porque alimentamos este silêncio.”